Criar. Começa-se por um esquisso. Porque acontece, simplesmente. E logo se descobre que existe um motivo. Um motivo que faz reflectir, que ensina. Que dói ou faz sorrir. Uma razão de elixir ou estricnina. Pode acordar-nos pela manhã ou apagar-nos na noite. Traz ventos de tempestade e acolhe na bonança. (É bom se nos acolhem na bonança. É mérito. É sinal do passo certo. É certeza de que nos amam. Que somos queridos. Não estamos esquecidos.)
O mote persegue a passos lentos o criador. Esconde-se na sombra colada a seus pés e tem querer. Só se manifesta em dias escolhidos, nasce em dias de magnânime expansão do recôndito. E dá-se a libertação, a catárse, eclode a arte.
Sempre prestei especial atenção às letras de canções.
Se a música é a roupagem voluptuosa e sensual que seduz, a letra, corpo vestido, não pode senão ter silhueta concordante e capaz de a envergar com elegância. Tem de lhe fazer jus em harmonia nos movimentos graciosos.
Agora, depois de um período de séria dedicação à escrita de letras de canções (Escrever Escrever, recomenda-se!), percebi melhor ainda este meu interesse, esta minha paixão pelas palavras musicadas. Percebi também quão grande é o Mestre Sérgio na mestria das frases para cantar, repletas de musicalidade e sentido.
Esta é a letra que mais venero. A letra que eu própria gostaria de ter escrito.
A letra que um dia gostaria que me cantasses. E sei que vais cantar.
Espalhem a notícia do mistério da delícia desse ventre Espalhem a notícia do que é quente e se parece com o que é firme e com o que é vago esse ventre que eu afago que eu bebia de um só trago se pudesse
Divulguem o encanto o ventre de que canto que hoje toco a pele onde à tardinha desemboco tão cansado esse ventre vagabundo que foi rente e foi fecundo que eu bebia até ao fundo saciado
Eu fui ao fim do mundo eu vou ao fundo de mim vou ao fundo do mar vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher
A terra tremeu ontem não mais do que anteontem pressenti-o O ventre de que falo como um rio transbordou e o tremor que anunciava era fogo e era lava era a terra que abalava no que sou
Depois de entre os escombros ergueram-se dois ombros num murmúrio e o sol, como é costume, foi um augúrio de bonança sãos e salvos, felizmente e como o riso vem ao ventre assim veio de repente uma criança
Eu fui ao fim do mundo eu vou ao fundo de mim vou ao fundo do mar vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher
Falei-vos desse ventre quem quiser que acrescente da sua lavra que a bom entendedor meia palavra basta, é só adivinhar o que há mais os segredos dos locais que no fundo são iguais em todos nós
Eu fui ao fim do mundo eu vou ao fundo do mim vou ao fundo do mar vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher vou ao fundo do mar no corpo de uma mulher bonita...